Museu Etnográfico da Lousã

O Museu Etnográfico Dr. Louzã Henriques, inaugurado em 1990 e reaberto ao público após remusealização em setembro de 2020, conta com um acervo de peças com foco na vida rural das décadas de 1950 de 1960, provenientes da coleção municipal, assim como da coleção particular do Dr. Louzã Henriques, médico da região que muitas vezes atendia pacientes em troca de objetos agrícolas.

Atualmente, a exposição divide-se em dois eixos: no primeiro piso, objetos como arados e alfaias dão enfoque à transformação da terra; já o terceiro piso, divido em áreas que representam as quatro estações do ano, centra-se em tarefas como a olaria, fiação do linho, pastoreio, explorando a significação da terra através da sazonalidade.

A exposição temporária do segundo piso é dedicada à reinterpretação de objetos etnográficos do museu por designers, artesãos contemporâneos e universidades, compondo o projeto das Aldeias do Xisto pela ADXTUR denominado “Agricultura Lusitana”, inicialmente conceptualizado para representar Portugal na Eunique – International Fair for Applied Arts and Design, realizada em Karlsruhe na Alemanha em 2015.

Na primeira foto, duas “capuchas” de palha, usadas como capas de chuva pelos pastores nas serras das Beiras e Trás-os-Montes. Como curiosade, nota-se que objetos semelhantes existem também na região de Tohoku, no norte do Japão: são as chamadas Mino (蓑), usadas durante o trabalho agrícola como proteção contra a neve e chuva. Alternativamente, as capuchas portuguesas também podiam ser feitas em burel, um tecido preparado a partir da lã da ovelha bordadeira, típica da Serra da Estrela, que além de protegerem da chuva, neve e vento, protegiam também do sol e até do fogo, devido ao seu elevado ponto de fusão.

Trabalhador agrícola com capa de chuva (mino), cerca de 1870, Japão. Acervo do Metropolitan Museum of Art https://bit.ly/3qUtZfT

A segunda imagem no post do instagram em cima mostra objetos usados no dia à dia da cozinha que, além de espaço de preparação e consumo de alimentos e de área de convívio, servia também como espaço de trabalho, principalmente para atividades artesanais como a tecelagem ou a olaria, já que muitas vezes constituía o único ponto de aquecimento de toda a casa.

Na terceira imagem, uma canga (peça de madeira encaixada sobre a cabeça dos bois para serem atrelados a uma carroça ou a um arado), provavelmente usada exclusivamente em eventos festivos como procissões católicas e não no trabalho agrícola. Isto deve-se à sua decoração exuberante, que denota uma mistura de símbolos cristãos e pagãos, possivelmente uma herança da antiga cultura castreja da região, além dos detalhes decorativos nas partes superiores, feitos com crinas de cavalo.

Na quarta imagem vemos uma paredede de alfaias agrícolas, organizadas em função da sua estética e design ao invés de por região ou cronologia.

Finalmente, a última imagem mostra uma secção da exposição “Agricultura Lusitana” com objectos contemporâneos inspirados em objetos etnográficos no museu, em particular uma instalação com escadas usada para a apanha da azeitona.

Mais informações:

Museu Etnográfico Dr. Louzã Henriques

Rua João Luso, 3200-201, Lousã

239 990 040

As lições do “mingei”

As lições do “mingei”
(Tradução para o português do artigo em inglês publicado na revista Garland. Para citação do artigo, por favor referir-se à versão original: Morais, Liliana. "Let’s go back to the campfire: The lesson of mingei". Garland Magazine, issue 25,  1 December 2021, disponível em: https://garlandmag.com/article/what-the-japanese-folk-crafts-movement-can-tell-us-about-the-gap-between-rich-and-poor/)

A palavra japonesa 民藝 mingei é uma abreviatura da expressão 民衆的工芸 minshûteki kogei, que pode ser traduzida para português como “arte popular” ou “artesanato do povo”. A expressão foi criada pelo filósofo japonês Yanagi Soetsu na era Taisho (1912-1926), um período marcado por intensa urbanização, industrialização, e a expansão de uma sociedade de consumo em massa no país. As mudanças bruscas no estilo de vida da população, somadas à ascensão do nacionalismo, foram catalisadores de um renovado interesse nas tradições japonesas após décadas de políticas verticais do governo que tinham como objectivo “civilizar e iluminar” (文明開化 bunmei kaika) o Japão seguindo os moldes ocidentais.

O interesse de Yanagi Soetsu por objectos de uso cotidiano produzidos à mão por pessoas comuns aprofundou-se durante sua visita à Coreia pouco depois da sua anexação ao império japonês em 1910. Juntamente com vários artistas-artesãos (na sua maioria homens) de classe média-alta e formação universitária, Yanagi iniciou um movimento para a apreciação, proteção e apoio de uma produção artesanal com associações a um passado autêntico, anterior à industrialização e ocidentalização do país. Yanagi advogou para que artesãos continuassem a produzir de acordo com modelos históricos, estilos simples e técnicas herdadas ao longo de gerações, e que evitassem inovações tecnológicos como substituto do trabalho manual. O filósofo inspirou-se nas preferências estéticas dos mestres de chá das elites japonesas do século XVI, como Sen-no-Rikyu, que elogiaram a beleza imperfeita e rústica (わび・さび wabi-sabi) das habitações rurais de pau-a-pique com telhados de palha (茅葺 kayabuki), dos potes de cerâmica para armazenamento de água na roça, e de outros utensílios comuns feitos pelas classes camponesas (農 nô) para a seu uso próprio na vida no campo. Quatrocentos anos antes de Yanagi, Rikyu já tinha proposto uma estética modesta e humilde, algo radicalmente diferente da então moda por luxuosos e sofisticados utensílios importados da China, num processo que escolho denominar coml “esteticização da pobreza”.

Casa de chá Ihoan, Templo Kodaiji, Quioto. Foto da autora.

Pensa-se que está cabana de chá, inspirada nas habitações tradicionais dos camponeses, tenha sido encomendada por Haiya Shoeki, um comerciante afluente, praticante de chá e escritor, no século XVII.

Yanagi também foi influenciado pelas ideias propagadas pelo crítico de arte John Ruskin e pelo designer socialista William Morris, associados ao movimento de Artes e Ofícios que, nos finais do século XIX, se alastrou pela Grã-Bretanha e, posteriormente, pelo resto da Europa e pelos Estados Unidos. Confrontados com uma sociedade mudando rapida e radicalmente, mudanças essas trazidas, em parte, pela Revolução Industrial e a consequente transformação de artesãos rurais em trabalhadores de fábricas urbanas, o movimento de Artes e Ofícios juntou designers com formação universitária, artistas e artesãos na produção de objetos utilitários de alto nível. O objectivo era desafiar a então dominante separação entre belas artes (fine arts) e artes decorativas (decorative arts, minor arts ou industrial arts, entre outras nomenclaturas), separação esta que excluía as últimas das renomadas academias de arte, relegando os seus produtores a uma hierarquia inferior à do génio, talentoso e inspirado artista. Influenciado pelas simpatias socialistas de Morris, o movimento das Artes e Ofícios foi impulsionado por um desejo de mudar a vida das pessoas comuns. Ao defender o trabalho artesanal como fonte de prazer e dignidade e advogar que objectos de alta qualidade feitos à mão fossem acessíveis a todas as classes, o movimento Artes e Ofícios apelou para uma reintegração entre vida, beleza, trabalho e sociedade. Infelizmente, os objectos artesanais feitos por seus membros (fabricados em pequenas quantidades com materiais de alta qualidade e envolvendo trabalho manual intenso e especializado), acabaram estando acessíveis apenas para o consumo de um grupo seleto, geralmente os industrialistas e capitalistas que lucravam com os produtos feitos na fábrica através de mão-de-obra barata, através de tarefas tediosas e repetitivas (a cena de Tempos Modernos de Charles Chaplin ilustra bem esse cenário). Ironicamente, os próprios designs de William Morris, originalmente talhados em blocos de madeira e impressos à mão, são hoje facilmente reproduzíveis com dispositivos mecânicos e digitais, imprimidos em tecido poliéster de baixa qualidade e vendidos a baixo custo em vários museus de artes decorativas ao redor do mundo.

Do mesmo modo, Yanagi e os outros membros do movimento mingei estimularam um novo enfoque em objectos de arte popular (mingei), agora vistos não apenas como objetos de interesse etnográfico mas também como objetos de apreciação estética (a partir de 1868, o Japão importou noções ocidentais de arte que excluíam o artesanato do mundo das belas artes). Isto permitiu que artesãos, até então anónimos, exibissem e vendessem suas obras pela primeira vez fora do perímetro das suas regiões, através do apoio e redes criadas pelos líderes mingei. Isto atraiu o interesse de uma classe média-alta japonesa, educada e urbana, que passou a consumir estes produtos como símbolo de uma tradição japonesa ameaçada pelo avanço de estilos de vida ocidentais. No entanto, isto levou ao aumento de preços e à remoção destes objetos da vida quotidiana de suas comunidades.

Casa-museu de Yanagi Soetsu, Museu de Artesanato Folclórico do Japão (Mingeikan), Tóquio. Foto da autora.

O antropólogo Brian Moeran investigou a fundo este complexo paradoxo na sua monografia Folk Art Potters of Japan: Beyond an Anthropology of Aesthetics (1997) – “Ceramistas de Arte Popular do Japão: Para além de uma Antropologia da Estética”. Nela, o autor explora como a reavaliação das tradições artesanais locais pelos líderes mingei alterou a vida comunitária, dinâmicas sociais e processo de produção na pequena aldeia cerâmica de Sarayama, prefeitura de Oita, na ilha de Kyushu, sul do Japão.

Com base no trabalho de Moeran e outros, gostaria de resumir alguns dos desenvolvimentos que surgiram do encontro entre ricos e pobres, centro e periferia, norte e sul, ocidente e oriente, nos últimos séculos:

  1. Um objecto artesanal é feito numa comunidade, utilizando materiais locais e técnicas herdadas, para uso quotidiano dos seus produtores ou como objecto de troca. Os objectos estão fortemente derivam das necessidades das pessoas, seu estilo de vida, preferências e visão do mundo.
  2. Intelectuais, críticos ou colecionadores descobrem a comunidade, chamando a atenção para os objectos aí produzidos através de publicações, exposições, e assim por diante.
  3. À medida que pessoas de fora da comunidade compram o objecto sem conhecimento direto dos seus produtores ou condições de produção, o objecto entra no mercado, tornando-se assim uma mercadoria no sentido marxista do termo.
  4. Os produtores locais necessitam produzir mais como resposta ao aumento da demanda. Para isso, podem introduzir tecnologia avançada para produzir de forma mais barata e eficiente. Uma maior produção significa que mais quantidades de matéria-prima são usadas, o que pode levar ao esgotamento dos recursos naturais locais. Quando isso acontece, materiais vindos de outros locais são utilizados ou alternativas artificiais são introduzidas.
  5. A promoção do objecto fora da região pode levar à popularização da comunidade que o produz, atraindo turistas. Isto pode gerar impactos ambientais e sociais, se em massa e desregulamentado.
  6. À medida que o dinheiro entra na comunidade em quantidades sem precedentes, os estilos de vida dos residentes são permanentemente alterados. No que anteriormente produziam uma variedade de objectos como complemento a outras actividades, os habitantes começam agora a dedicar-se apenas a um tipo de produção artesanal a tempo inteiro. Como alguns produtores recebem mais atenção e a vendem mais do que outros, as desigualdades dentro da comunidade vão se alargando.
  7. A mudança dos estilos de vida e o desenvolvimento de uma economia monetária levam a que os membros da comunidade se tornem eles mesmos consumidores. Eles podem agora comprar produtos industriais baratos enquanto fabricam objectos artesanais para vender para turistas e colecionadores, que estão dispostos a pagar preços mais elevados. Os objectos já não preenchem uma função na comunidade que os produz. Separados do seu contexto e significado originais, os objectos podem perder a sua aura de autenticidade, tornando-se assim “arte turística” (ver Clifford, 1998).
  8. Cópias baratas dos objetos são produzidas, atraindo consumidores leigos. Os materiais, processos e mão-de-obra envolvidos na produção tornam-se irrelevantes, levando ao que Marx chamou de “fetichismo de mercadoria” (os consumidores não sabem quem, onde e como o objecto é produzido, mas fetichizam o produto final).
  9. Com a rápida mudança das tendências do mercado e recessões económicas, a procura do objecto diminui.
  10. Alguns coleccionadores podem ainda comprar o objecto visto como “autêntico” para vender às classes mais altas (geralmente no exterior) ou expor em galerias e museus como insígnia de um cenário nostálgico, uma cultura exótica, ou de um passado romantizado. O governo local põe em prática políticas culturais para garantir que as técnicas e abilidades utilizadas na confecção do objecto sejam transmitidas às gerações futuras, levando a que, por vezes, estas se tornem a performativas. O resultado é, muitas vezes, a produção de um simulacro de um objecto percebido como autêntico. O processo de produção e a aparência do objecto podem ficar anacrónica e artificialmente parados no passado de modo a manter sua aura de autenticidade, ao invés de evoluir organicamente com a vida das pessoas.

Haverá uma solução para este paradoxo? Acredito que uma conversa sobre o lugar do artesanato nesta dicotomia entre ricos e pobres não pode acontecer sem questionar o nosso actual sistema económico global, que depende da exploração ambiental, expropriação de terras, acesso desigual a recursos, e desigualdade entre norte e sul, este e oeste, centro e periferia para a sua manutenção.

Ferramentas de pesca usados pela etnia Ainu, Museu Folclórico Ainu Kussharo Kotan. Foto da autora.

Em 2019, os Ainu de Hokkaido foram oficialmente reconhecidos como povos indígenas do Japão, 120 anos após políticas de assimilação do governo terem levado a sua cultura à quase extinção. Expropriados de suas terras e obrigados a se tornarem agricultores em outros locais, os objetos utilizados no seu dia-a-dia de de caçadores-recolectores e nos rituais associados a esse estilo de vida agora só podem ser vistos em museus e galerias ao redor do Japão. Em 2009, com o objetivo de recuperar as abilidades, conhecimentos e significações associados aos objectos que em tempos fizeram parte do quotidiano de seus antepassados, o Museu Universitário de Hokkaido implementou um projecto destinado a explorar a relação entre artistas contemporâneos de herança Ainu e os materiais e objectos feitos pelos seus ancestrais (ver Yamasaki & Miller, 2018).

Um artesanato popular para o futuro

No período do pós-guerra, a palavra mingei tornou-se sinónimo de produtos antiquados, baratos e feitos à mão, comprados por residentes urbanos, afluentes e de meia-idade e como lembranças de áreas rurais cada vez mais exploradas e despovoadas, dependendo do turismo para a sobrevivência económica.

Entretanto, nos últimos anos, interesse por mingei reapareceu entre uma classe média urbana jovem e ambientalmente consciente, que começou a ver o artesanato como um modo de produção e consumo éticos e personalizados. O aumento da “consciência do estilo de vida” 生活意識 seikatsu ishiki), ou seja, a consciência de que os objetos comuns que nos rodeiam no dia-a-dia desempenham um papel importante no nosso bem-estar, também contribuiu para esta tendência (Kurata, 2015). Infelizmente, na maioria das vezes, estes desenvolvimentos tendem a ser canibalizados pelo próprio capitalismo.

No entanto, saber quem faz o quê e como é primeiro passo na aniquilação do fetichismo da mercadoria que leva à exploração laboral e ambiental. Dada a oportunidade (isto é, um emprego estável, salário digno e suficiente rendimento disponível), a maioria das pessoas opta por investir em bens mais caros mas de alta qualidade e longa durabilidade, investindo em seu cuidado e reparação, diminuindo, deste modo, o consumo, desperdício, e impacto ambiental. A ligação directa entre produtores e consumidores, através de estúdios abertos, festivais, e outras iniciativas centradas no fabricante, processo e material, parece ser crucial para que isto aconteça. Precisamos de criar mais oportunidades para trazer objectos de valor histórico, estético e artístico para fora do espaço intocável do museu e para dentro da vida das pessoas comuns, de modo a reforçar a fortalecer a interrelação entre pessoas e objetos artesanais.

Mas artesanato não é apenas acerca de objectos. Artesanato é sobre conexões humanas, um elemento essencial para uma vida longa e saudável de acordo com pesquisas recentes. Artesanato também são o conhecimento, tempo e dedicação investidos em fazer algo que irá acrescentar positivamente à vida tanto dos produtores como dos utilizadores. É sobre troca, cuidado pelos outros, respeito dos outros, e orgulho pelo resultado das nossas agilidades e esforços. É sobre uma ligação com os materiais e, por extensão, com o ambiente em que esses materiais habitam. É sobre a experiência estética alcançada não apenas através da contemplação desinteressada em lugares de culto como são a maioria dos museus, mas através de todos os sentidos (tato, audição, visão, olfato e paladar).

Saber como as coisas são feitas e conhecer as pessoas que as fazem é compreender o tempo e o cuidado investidos na aquisição de uma abilidade que permite a transformação aparentemente mágica de matérias-primas em objectos quotidianos que trazem significado e prazer à nossa vida quotidiana. Como cultura, precisamos urgentemente de reavaliar a nossa preferência pelas chamadas aptidões “intelectuais” sobre capacidades tácitas e providenciar a devida dignidade e respeito àqueles que fazem coisas essenciais para a nossa vida, a começar pelos alimentos.

Comida parece ser uma peça crucial para repensar a forma como nos relacionamos com o artesanato e como o artesanato se relaciona com a vida. O movimento slow food (literalmente “comida lenta”) tem sido acompanhado por um ressurgimento de interesse pelo artesanato. Isto não é uma coincidência. Muito do artesanato está ligado à sociabilidade e aos seus rituais, como aqueles envolvidos no processo de comer e beber, especialmente com os outros. Para que o artesanato floresça e permaneça relevante na vida daqueles que o produzem, temos despriorizar o crescimento económico e privilegiar a felicidade, o bem-estar e oportunidades regulares de desfrutar a “vida boa”, um conceito já enfatizado pelo filósofo grego Aristóteles. Para isso, precisamos recuperar aquilo que nos torna humanos: a vontade de nos reunirmos à volta de uma fogueira com um copo da nossa bebida preferida e contar histórias sobre o passado, ao mesmo tempo que imaginamos um futuro melhor.

Reunidos em torno de uma fogueira em Cunha, no interior de São Paulo (Brasil) onde o artesanato é parte integrante da vida quotidiana das pessoas que o produzem. Foto da autora.

Referências

Brandt, Kim. 2007. Kingdom of Beauty: Mingei and the Politics of Folk Art in Imperial Japan. Durham and London: Duke University Press.

Clifford, James. 1988. “On Collecting Art and Culture”. In The Predicament of Culture. Harvard University Press, pp.215-229.

Clammer, John. 2015. Art, Culture and International Development: Humanizing Social Transformation. London and New York: Routledge.

Fischer, Edward F. 2014. The Good Life: Aspiration, Dignity, and the Anthropology of Well-Being. Sandford University Press.

Kurata, Takashi. 2015. Mingei to intimacy (itoshisa) wo design suru. Tokyo: Meiji Daigaku Shuppankai.

Kikuchi, Yuko. 2004. Japanese Modernization and Mingei Theory: Cultural Nationalism and Oriental Orientalism. London/ New York: Routledge Curzon.

Moeran, Brian. 1997. Folk Art Potters of Japan: Beyond and Anthropology of Aesthetics. Surrey: Curzon Press.

Morais, Liliana Granja Pereira de. 2016. Cerâmica em Cunha: 40 anos de forno noborigama no Brasil. Instituto Cultural da Cerâmica de Cunha.

Rennstam, Jens. 2021. Craft and degrowth – An exploration of craft-orientation as a mode of organizing production and consumption for addressing climate change. Paper presented at the EGOS colloquium, Amsterdam.

Sennett, Richard. 2008. The Craftsman. New Haven & London: Yale University Press.

Yamasaki, Koji & Miller, Mara. 2018. “Ainu Aesthetics and the Philosophy of Art: Replication, Remembering, and Recovery”. In New Essays in Japanese Aesthetics, edited by Nguyen Minh. Lexington Books, pp. 139-152.

Yanagi, Soetsu. 1972. The Unknown Craftsman: a Japanese Insight into Beauty. Kodasha International.

Guerras da Cerâmica Coréia-Japão

Em 1592, o senhor feudal (daimyô) Toyotomi Hideyoshi invadiu a Península Coreana como parte do seu projecto de unificação do arquipélado japonês, gerando um conflito conhecido como Guerra de Imjin, que durou de 1592 a 1598. Durante este período, uma estimativa de 50.000 pessoas foram capturadas e trazidas para o Japão como prisioneiros de guerra, incluindo ceramistas e outros artesãos especializados. A sua presença contribuiu fortemente para o desenvolvimento da arte japonesa, particularmente na ilha de Kyushu, onde muitos deles estabeleceram ateliês de cerâmica.


Segundo a lenda, foi um desses ceramistas coreanos, Yi Sam-pyeong, o primeiro a descobrir depósitos de caulim em território japonês, na jazida de Izumiyama, localizada na cidade de Arita, província de Saga. Caulim é uma rocha feldspática essencial para a produção de porcelana, um tipo de cerâmica branca, translúcida, e altamente valorizada no mundo inteiro, especialmente na Europa, onde o processo de produção só foi descoberto no século XVIII. A descoberta de caulim em Izumiyama despoletou a primeira produção de porcelana no Japão em 1616, quatro séculos depois da China ter iniciado a produção do chamado “ouro branco”. A partir de meados do século XVII, com o declínio das exportações chinesas devido a guerras civis, a porcelana de Arita foi exportada para a Europa através da Companhia Holandesa das Índias Orientais (VOC) desde o porto de Imari, ficando assim conhecida como cerâmica Imari.


No entanto, foi numa pequena aldeia nas montanhas localizadas a nordeste de Arita que os segredos da luxuosa porcelana Nabeshima, patrocinada pelos senhores feudais de Nabeshima, foram guardados. Em Okawachiyama, artesãos altamente qualificados produziram porcelana requintadamente decorada, queimada em fornos noborigama, para uso exclusivo da nobreza japonesa, que mantinham os seus segredos a salvo ao proibir os ceramistas de deixarem a vila.


Na margem oriental do rio Imari em Okawachiyama, um túmulo em forma triangular lembra-nos as contribuições dos artesãos anônimos, muitos deles prisioneiros de guerra trazidos da Coreia durante a Guerra de Imjim (também conhecida como Guerras de Cerâmica), para o desenvolvimento artístico japonês. Actualmente, existem ainda cerca de 30 fornos que continuam a produzir porcelana na região.

Kôgei entre o Japão e o Brasil: A cerâmica de Shoko Suzuki

(Tradução para o português de artigo em inglês publicado na revista Garland. Para citação do artigo, por favor referir-se à versão original: Morais, Liliana. "Kôgei between Japan and Brazil: The ceramics of Shoko Suzuki". Garland Magazine, issue 24,  30 August 2021, available at: https://garlandmag.com/article/kogei-between-japan-and-brazil-the-ceramics-of-shoko-suzuki/)

Kôgei é a palavra japonesa para o inglês craft, que em português pode ser traduzida como artesanato. Comparar a etimologia e significado das três palavras oferece-nos pistas valiosas sobre os modos de olhar, compreender e atribuir valor aos objetos e habilidades incluídas nestas três categorias.

O termo craft apareceu pela primeira vez na língua inglesa há cerca de mil anos e, durante a maior parte de sua história, foi usado como sinônimo de “conhecimento”, “poder” e “habilidade”. A partir do século XIX, seu significado mudou para se referir a uma categoria de coisas (em especial, uma categoria de objetos) ao invés de uma forma de fazer as coisas (seja fazer guerra, tornear um pote ou montar a cavalo), como anteriormente

A palavra japonesa kôgei 工藝, de origem chinesa, foi registada pela primeira vez no século 7 no Livro de Tang da dinastia da China. Entretanto, seu uso generalizado no Japão remonta a 1873, quando apareceu como tradução do inglês craft na Exposição Internacional de Viena. A palavra é composta por dois ideogramas, 工e gei 藝, que contém em si os significados de “habilidade”, “arte” e “técnica”.

Em Arte Modern Japanese Art and the Meiji State: The Politics of Beauty (2011), o historiador de arte japonês Doshin Sato explica que, embora a palavra japonesa gigei 技藝 (“arte técnica”) possa ter sido a mais próxima do significado moderno do inglês craft no Japão pré-moderno, a maioria das profissões artesanais eram designadas pelo ideograma 工 precedido pelo material usado na produção do objeto. Assim, por exemplo, um ceramista seria chamado de tôkô 陶工 (“técnico de cerâmica”) e um trabalhador de laca japonesa shikkô漆工 (“técnico de laca”), indicando assim a centralidade do material para a prática, apreciação e compreensão destas diferentes formas de arte/ habilidades.

Finalmente, a palavra portuguesa artesanato vem do latim ars e, semelhante ao japonês, transmitia os significados de “habilidade”, “técnica” e “talento”. Entretanto, devido à separação eurocêntrica entre arte (ou belas-artes) e artesanato que ocorreu na era moderna (enquanto alguns pesquisadores apontam para o Renascimento, outros localizam esta divisão em meados do século XVIII), a palavra portuguesa artesanato denota frequentemente um tipo de trabalho manual amador, simples, doméstico e pouco especializado, normalmente feito por mulheres ou minorias étnicas como suplemento de renda. Assim, a maioria dos artesãos brasileiros, em especial aqueles com educação de nível superior ou treinamento profissional especializado, evita se autodenominar de artesão ou artesã.

Devido à associação da palavra artesanato com ruralidade, amadorismo e domesticidade, exatamente 60 anos após a chegada dos primeiros imigrantes japoneses no Brasil, um grupo de artistas e artesãos japoneses, a maioria dos chegados no país após a Segunda Guerra Mundial, escolheu a palavra japonesa kôgei em vez do português artesanato para nomear sua associação e exposição anual destinada a promover o artesanato japonês (kôgei)[1] em seu novo país de residência.

A Associação de Arte Kôgei foi criada em 1968 para educar o público brasileiro sobre o “autêntico” artesanato tradicional japonês. Entretanto, quando os monarcas japoneses visitaram o Brasil em 1997, alguns membros da associação pensaram que seria melhor mudar o nome de forma a destacar a assimilação, adaptação e influência dos imigrantes japoneses na sociedade brasileira. De fato, foi a mestre ceramista Shoko Suzuki quem sugeriu que o uso da palavra inglesa craft:

Eu lembrei daquela palavra de William Morris[2]. Ele estava preocupando com alto nível de trabalho de mão. Craft é assim […]. Craft para mim parece muito internacional, mais do que kōgei, kōgei é japonês. […] Nós viemos aqui, não é para ser, divulgar, japoneses. Precisamos entrar nessa cultura brasileira […]. Tem que ser internacional, universal.

Entrevista com Shoko Suzuki em 2012
Novo Mundo de Shoko Suzuki. Foto de Felipe Costa.

Shoko Suzuki (Tóquio, 1929-) havia imigrado para o Brasil em 1962, depois de assistir a um programa de televisão da emissora nacional japonesa NHK sobre o Brasil. O programa exibia imagens das (cada vez mais escassas) áreas virgens da Floresta Amazônica e da capital Brasília, construídas em uma região deserta em um ambicioso projeto de design do arquiteto modernista Oscar Niemeyer (1907-2012). Estas imagens alimentaram o desejo da ceramista de deixar o Japão, após ter vivenciado os horrores da Segunda Guerra Mundial e experienciado discriminação de gênero. Ela ansiava por começar do zero em um lugar onde uma tradição rígida e estritas normas sociais não restringiriam sua liberdade e criatividade. Como mulher no Japão pós-Ocupação, ela teve que superar invisíveis barreiras de gênero na sua busca por um mestre ceramista que a aceitasse como aprendiz. Em exposições de renome como a Tôtôkai, realizada pela associação do mesmo nome fundada pelo renomado ceramista Hazan Itaya (1872-1963), ela foi, por vezes, a única mulher entre um grupo de quarenta ceramistas do sexo masculino.

Shoko Suzuki trabalhando em um torno manual no Japão, cerca de 1960.
Arquivo pessoal da artista.

Depois de assistir ao mencionado programa da NHK no final de 1961, Suzuki rapidamente colocou sua casa à venda e reuniu a documentação necessária para iniciar o processo oficial de emigração. Ela chegou ao porto de Santos, no Estado de São Paulo, a bordo do navio Argentina-Maru, em maio de 1962, após uma viagem de dois meses. Logo alugou uma casa de pau-a-pique em Mauá, no interior de São Paulo, onde começou a coletar argilas e feldspatos locais e a fazer experimentos de esmaltes de cinzas naturais com plantas e vegetais da região. Em 1964, ela e o marido, o pintor Yukio Suzuki, compraram uma casa na vizinha região de Cotia, onde Shoko Suzuki deu início à construção de um forno tradicional japonês alimentado a lenha chamado noborigama (literalmente “forno que sobe”, o noborigama foi introduzido no Japão por artesãos coreanos no século 16 durante chamadas “guerras de cerâmica” decorrente da invasão japonesa da península). Para a construção do forno, Suzuki usou um projeto que havia recebido como presente de despedida do Japão de um amigo ceramista que havia estudado com o Tesouro Nacional Vivo Yuzo Kondo. Como material, ela usou tijolos reciclados da vizinha fábrica de porcelana Mizuno, estabelecida por imigrantes japoneses quatro anos antes. Embora a construção de um forno noborigama no Brasil não fizesse parte de seu plano inicial, a inclinação íngreme do terreno acabou sendo perfeita para o projeto que havia recebido. Nas palavras da ceramista:

Eu não ia fazer forno noborigama no Brasil. Mas o meu amigo deu-me o projeto dele. No Japão, era uma tradição muito rigorosa. Ele era aluno de uma pessoa muito importante no Japão. […]. Geralmente isso [plano arquitetónico de forno] era muito segredo. Naquela época, ceramistas com pouco nome conservavam segredo, mas ele disse: “esse forno eu vou dar, porque você vai para o fim do mundo, esse é só para você!”. Então eu lembrei e pensei: vou usar esse aqui. O tamanho do forno é pequenino e a inclinação [do terreno] é exatamente para esse forno.

Entrevista com Shoko Suzuki em 2012.
Shoko Suzuki com o marido Yukio Suzuki na frente de seu forno noborigama chamado Saigama 彩窯, que significa “forno de cor”, em Cotia em 1965. Arquivo pessoal da Artista.
Shoko Suzuki em seu ateliê em Cotia em 2012. Foto de Felipe Costa.

No Brasil, os povos indígenas têm queimado argila para produzir uma variedade de objetos desde há pelos menos 2000 anos atrás. Tipicamente feita por mulheres em ambiente doméstico, a cerâmica indígena era formada à mão, pintada com uma mistura de pigmentos naturais e queimada a baixas temperaturas de cerca de 700°C em simples fornos de chão. A partir do século 16, com a colonização portuguesa, ceramistas especializados aglomeraram-se no litoral e a argila foi usada tanto para trabalhos de construção (como telhas e tijolos) quanto para louça de mesa, formada na roda do oleiro e queimada em fornos de corrente vertical (updraft) que atingiam cerca de 1000°C. Nesta época, a faiança foi trazida de Portugal e, após a descoberta do caulim na Saxônia em 1750, a porcelana de alta qualidade também foi importada para o uso de poucos. A partir de meados do século XIX, com movimentos em massa vindos da Europa, a produção de cerâmica industrial expandiu-se liderada por imigrantes portugueses e italianos e impulsionada por novas tecnologias. Em 1928, a fábrica de porcelana S. Toyoda e Companhia Limitada foi fundada em São Caetano do Sul pela primeira família de imigrantes japoneses na cidade e permaneceu em funcionamento até 1981.

Na primeira metade do século XX, a cerâmica decorativa de Theodoro Braga (1872-1953) e as esculturas de barro de Vitor Brecheret (1894-1955) contribuíram para esmaecer as fronteiras entre belas-artes e artesanato transplantados para o Brasil com a colonização europeia. A cerâmica popular, com forte ligação à tradição indígena, exemplificada pelo trabalho do Mestre Vitalino (1909-1963) e dos artesãos do Vale de Jequitinhonha, em Minas Gerais, também foi reavaliada em suas qualidades artísticas e estéticas. Mais recentemente, mulheres como Lygia Reinach (1933-), Ofra Grinfeder (1945-) e Norma Grinberg (1951-) aliaram cerâmica e arte conceitual, e Kimi Niii (1947-), cerâmica e design.

Artesãos e artistas imigrantes do Japão, como Shoko Suzuki, Akinori Nakatani (1943-), Mieko Ukeseki (1946-), Shugo Izumi (1949-), Kenjiro Ikoma (1948-) e outros, tiveram um papel essencial na expansão de objetos funcionais, decorativos e escultóricos feitos em cerâmica para além do território convencional do artesanato. Eles foram responsáveis pela disseminação de técnicas japonesas, como a queima a lenha em alta temperatura em fornos anagama e noborigama e a queima de cinzas com vegetais naturais, entre praticantes e o público em geral. O atual boom de cerâmica feita à mão, visível especialmente nas áreas urbanas ao redor do Brasil, deve certamente às raízes que eles, e aqueles que os precederam, laboriosamente plantaram.

Em 2006, a aprendiz de Shoko Suzuki, Ivone Shirahata, construiu um forno noborigama seguindo o mesmo projeto que Suzuki recebeu antes de deixar o Japão, em seu ateliê Terra Bela. Nomeado de Akebonogama (do japonês “amanhecer”), é o terceiro do seu tipo, depois do original construído pelo ceramista Yoshikazu Shinoda em Nagano, chamado Metobagama, e o Saigama de Suzuki.  

Eu fiquei tão feliz! Eu queria ficar no meio. Eu queria aprender pisando no chão, sozinha, absorvendo.

Shoko Suzuki
Torno manual estilo japonês de Shoko Suzuki. Foto de Felipe Costa, 2012.
Esmaltes de cinzas naturais em processo de preparação no ateliê de Shoko Suzuki. Foto de Felipe Costa, 2012.

Shoko Suzuki passou dois anos testando a argila e os esmaltes feitos de matérias-primas locais em seu novo forno antes de mostrar o seu trabalho oficialmente ao público brasileiro. Em 1967, ela chamou finalmente membros da comunidade japonesa e brasileira para a abertura formal do forno em seu ateliê, um evento que reuniu um total de 800 pessoas. Em 1975, Suzuki expôs sua cerâmica em uma exposição individual no Museu de Arte de São Paulo (MASP), um dos mais renomados museus de arte do Brasil e a primeira artista plástica nascida no Japão a fazê-lo. Em 1984, ela finalmente teve a oportunidade de admirar em primeira mão as construções modernistas de Niemeyer quando viajou a Brasília para uma exposição na Fundação Cultural do Distrito Federal. E em 1995, ela retornou ao Japão pela segunda vez após imigrar para o Brasil, para uma exposição intitulada “Mostra Itinerante Nipo-Brasileiros Contemporâneos”, realizada em comemoração ao Centenário do Tratado de Amizade Brasil-Japão no Museu de Arte da Província de Niigata e outras instituições ao redor do Japão, sendo a única ceramista de um grupo de 37 artistas nipo-brasileiros. Em 2017, Shoko Suzuki recebeu uma Ordem de Mérito do governo japonês por suas notáveis contribuições à cultura japonesa.

Durante uma de suas visitas ao Japão, uma velha amiga ceramista, olhando as obras de Suzuki em uma exposição, disse-lhe “você não é mais japonesa”. Suzuki riu ao me contar a história em seu ateliê: Eu fiquei tão feliz! Eu queria ficar no meio. Eu queria aprender pisando no chão, sozinha, absorvendo.

Detalhe da obra da série Campo de Shoko Suzuki. Foto de Felipe Costa, 2012.
Obras de Shoko Suzuki, série Cosmos. Foto de Felipe Costa, 2012.

Observações:

  • Este artigo é baseado na minha tese de mestrado intitulada “Duas Mulheres Ceramistas entre o Japão e o Brasil: Identidade, Cultura e Representação”, Universidade de São Paulo, 2014.
  • Todos os nomes japoneses estão na ordem ou Nome-Sobrenome.

[1] A palavra japonesa kôgei é usada para denominar obras geralmente, mas não necessariamente, de caráter funcional e/ou decorativo, feitas em materiais como cerâmica, vidro, metal ou madeira, entre outros.

[2] William Morris é considerado um dos principais fundadores do movimento das Artes e Ofício (Arts and Crafts Movement em inglês) na Inglaterra no final do século XIX e principal responsável pelo rebranding da palavra craft.

Ceramistas e suas ferramentas

Embora objetos inanimados, as ferramentas utilizadas pelos artesãos, ou outros especialistas, funcionam como uma extensão de seus dedos, mãos e corpo.


“Onde a tecnologia é simples, a ferramenta é uma extensão do corpo; a lançadeira* alonga e refina o dedo, o martelo é um punho mais duro e mais poderoso. A ferramenta segue o ritmo do corpo; ela aumenta e intensifica, mas não substitui e não introduz nada basicamente diferente (Margaret Mead, antropóloga, em Cultural Patterns and Technical Change, Paris: Unesco, 1953, tradução minha).

*lançadeira: utensílio usado na tecelagem manual no tear.


Por causa disso, não é raro ceramistas no Japão fazeerem suas próprias ferramentas ou adaptarem ferramentas pré-existentes à forma e funcionamento de suas mãos e de seu corpo. Além das sugestões visuais, as ferramentas também são uma forma importante de o artesão obter informações sobre o progresso de seu trabalho e as condições dos materiais durante o processo de fabricação, usando os sentidos da audição e do tato.

Embaixo podem ver algumas ferramentas usadas pelos ceramistas no Japão, fotografadas no Museu de Cerâmica Setoguro, na prefeitura de Aichi, e sua descrição.

Na figura 1, da esquerda para a direira: couro curtido (nameshigawa), espátula (hera) e talochas (kote). Na figura 2: shippiki. Na figura 3: balde para aquecer as mãos (kanburo).

Talochas (kote)

Ferramenta, geralmente feita de cipestre japonês, usada para dar forma à argila ao pressioná-la contra a superfície interna da peça no trabalho no torno. Existe em vários formatos dependendo do objecto a ser produzido. A posição do corte na parte superior serve de guia de profundidade. Para um recipiente com uma boca estreita e longa, usa-se uma talocha com cabo longo (egote), que tem uma constrição na ponta para que possa ser facilmente colocada e removida através da abertura.

Espátula (hera)

Ferramenta usada para alisar a peça após a modelagem no torno com a talocha, agindo também como uma régua para a superfície curvada no interior do vaso. A espátula tem um acabamento com um único gume e pode ser afiada após desgaste com uso. Feita de madeira dura de grão fino, como jujuba ou buxo, não amolece mesmo depois de estar todo o dia mergulhada em água. Segundo alguns ceramistas, quando a forma da peça atinge o nível de perfeição, a sensação é de como se a espátula estivesse sendo absorvida pela argila.

Couro curtido (nameshigawa)

Ferramenta usada para dar os toques finais na boca da peça, suavisando-a para evitar que ela rache ou deforme quando fôr queimada devido às partículas irregulares da argila. Em termos de materials, couro de veado é preferido por ser mais próximo à pele humana. Couro mais grosso é usado para peças maiores e couro mais fino para peças menores.

Shippiki

Ferramenta usada para separar a peça do torno. Com o torno girando, o shippiki é enrolado ao redor da peça e puxado. Enquanto qualquer material resistente à água pode ser usado, como algodão, cânhamo, ou arame, em Seto era comum usar cordas de palha amarradas. Visto o padrão ser diferente dependendo de quem fazia e usava a ferramenta, o ceramista podia ser identificado ao olhar para o fundo da peça (itosoko).

Balde para aquecer as mãos (kanburo)

Balde com água usada na roda do oleiro. No inverno, o carvão vegetal é colocado no cilindro de cobre para aquecer a água.

Referência: Catálogo de Exposição, Seto: Museu Setogura, 2007.

Museu de Cerâmica de Seto

O polo de cerâmica de Seto, localizado a cerca de 30 minutos de trem da cidade de Nagoya na prefeitura de Aichi, é considerado um dos “seis antigos fornos do Japão” (六古窯 rokkoyo, em japonês), nomenclatura criada pelo ceramista e pesquisador Fujio Koyama em 1948 para denominar as principais regiões do Japão que se dedicaram à produção de cerâmica de forma especializada desde o período Kamakura (1192-1333):  Echizen, Seto, Tokoname, Shigaraki, Tamba e Bizen. Designados como Patrimônio do Japão pela Agência de Assuntos Culturais, um braço do Ministério da Educação, Cultura, Esportes, Ciência e Tecnologia do Japão (MEXT) em 2017, hoje sabe-se que haviam mais do que seis polos especializados da produção de cerâmica em altas quantidades dadatos da mesma época.

Em japonês, uma das palavras para cerâmica é setomono, exemplificando a popularidade da região. Segunda a lenda, a fundação do polo de cerâmica de Seto é atribuída a Kato Shirozaemon Kagemasa, que teria acompanhado o famoso monge zen Dogen ao sul da China e aprendido a arte da cerâmica, trazendo-a de volta para o Japão. A partir de 1300, ceramistas de Seto produziriam imitações de famosos esmaltes chineses e coreanos, como o celadon e o tenmoku e, no século 15, os primeiros chaire (pote para o chá forte) foram produzidos em Seto como substitutos para luxuosos utensílios chineses.

Jarro (tsubo) com crisântemos estampados e esmaltes de cinzas naturais, estilo Ko-Seto, final do século 13 e início do século 14, Metropolitan Museum of Art 
https://www.metmuseum.org/art/collection/search/53203

Especializando-se em uma variedade de estilos, a região de Seto é conhecida pela produção de cerâmicas com esmaltes de cinzas naturais chamada yakishime, associadas à estética simples rústica do wabi-sabi promovida pelo mestre de chá Sen-no-Rikyû (1522-1591). A partir do período Meiji (1868-1912), com a popularização da arte japonesa no Ocidente (Japonismo), as fábricas de Seto especializaram-se na produção de cerâmicas para exportação, procurando novas abordagens em termos de design e decoração.

Eu visitei a cidade de Seto, incluindo do Museu Setogura do qual vos tragos as fotos em baixo, em fevereiro para a minha pesquisa de doutorado sobre ceramistas ocidentais no Japão (infelizmente, não consegui encontrar nenhum em atividade na região). Como outras regiões de produção artesanal e industrial do Japão, a cidade tem passado por dificuldades nas últimas décadas, após o desacelaração do boom de turismo doméstico rural e interesse pela produção artesanal tradicional dos anos 1980 durante a chamada bolha econômica especulativa. Desde os anos 1990, a região tem então se deparado com uma baixa demanda e consequente drástica redução de preços, em parte devido à fácil acessibilidade e baixos custo de produtos importados, mas também devido à mudança dos gostos e estilo de vida dos consumidores. Isto tem levado à dificuldade dos artesãos em encontrar sucessores para dar continuidade à suas técnicas.

“Na era Meiji (1868-1912), as lojas vendendo cerâmicas de Seto começaram a se alinhar na entrada dos distritos onde os ateliês e fornos estavam localizados. Na década de 1880, com a melhoria dos acessos rodoviários, lojas também abriram ao longo do rio Seto. Estas vendiam todos os tipos de cerâmicas e as louça eram amarradas com cordas e empilhadas, como mostra a foto”. (Tradução do japonês da etiqueta de descrição da primeira imagem exibida no Museu Setogura, na cidade de Seto, prefeitura de Aichi).

Mais informações:

Museu Seto-Gura: https://www.aichi-now.jp/en/spots/detail/19/

Website dos Seis antigos fornos do Japão: https://en.sixancientkilns.jp/

Fogos de artifício e carros alegóricos na capital japonesa da cerâmica

Para os Japonófilos de plantão, Gion Matsuri (ou Festival de Gion) é sinónimo da antiga capital imperial de Quioto no Japão. Hoje venho falar-vos de um outro festival do mesmo nome que acontece anualmente na capital japonesa da cerâmica (ou numa das regiões mais famosas pela produção de cerâmica artesanal): Mashiko, na província de Tochigi, a cerca de 150 kilómetros a norte de Tóquio.

De fato, o Festival de Gion de Mashiko tem raízes semelhantes às que levaram ao desenvolvimento de famoso Festival de Gion em Quioto: uma epidemia. A ideia de organizar um festival com multidões como solução para uma pandemia pode parcer em 2021 uma ideia aberradora, especialmente tendo em conta os desenvolvimento dos últimos 18 meses. No entanto, para os japoneses pré-modernos, a causa de pragas e epidemias acreditava estar relacionada à má sorte e à presença maus espíritos. Sendo assim, nada melhor que uma festa regada a sakê (álcool feito de arroz) para alegrar os deuses e rezar para que dias melhores virão.

Segundo a Associação Turística de Mashiko, o Festival de Gion da cidade remonta a 1705, quando uma praga levou à perda de colheitas e à morte de vários habitantes da região. Atualmente, a celebração é realizada todos os anos no final de julho durante três dias e inclui procissões dos santuários portáveis (mikoshi) durante o dia e fogos de artifício e paradas de carros alegóricos iluminados (chokoku yatai) durante a noite. A “Cerimônia de Recebimento de Sakê das Divindades” (Omiki Chodai Shiki), durante a qual dez líderes da comunidade bebem 6.5 litros de vinho de arroz de uma taça gigante, também acontece nesta ocasião.

Eu visitei o Festival de Gion em Julho de 2016 e o que mais me impressionou foram os tradicionais canhões de fogo (tezutsu hanabi  手筒花火) atirados à mão por uns senhores vestindo trajes tradicionais à prova de ignição. Feitos de tubos de bambu de cerca de 80 cm de comprimento, embrulhados em uma corda feita com palha de arroz e alimentado com até 3 kilos de pólvora, estes fogos de artifício acredita terem-se originado como uma forma de comunicação entre os castelos-fortaleza durante a Época dos Estados em Guerra (Sengoku Jidai) nos séculos 15 e 16.

Habitantes de Mashiko transportando o mikoshi (santuário portátil), Festival Gion. Julho de 2016.

Mais informações:

http://www.mashiko-kankou.org/english/index.html

A alquimia do fogo, terra, água e ar

Hikidashi (引き出し) é uma técnica japonesa de queima e decoração de cerâmica que consiste em tirar uma peça do forno ainda quente, criando um choque de temperatura. Isto, juntamente com o ato de submergir a peça ainda incandescente em água ou cobrí-la com serragem, resulta em uma estética peculiar muito apreciada pela sua intensa cor preta, conhecida como hikidashi-guro (引き出し黒).

Hikidashi um método semelhante ao popular raku, exceto que as peças são tiradas do forno em temperaturas mais altas. Como o raku, era popular entre os mestres do chá do século 16 e hoje alguns ceramistas ainda utilizam a técnica para a fabricação de tigelas chawan (茶碗)usadas na cerimônia do chá.

Em cima, fotos de uma queima de hikidashi no estúdio de cerâmica de Douglas Black, em Mashiko, Japão.

Em baixo, um hikidashi-guro chawan feito na região de Seto, um dos “seis antigos fornos do Japão”, na província de Aichi.

Seto-guro chawan chamado Tettsui. Período Momoyama (1573–1615). Grés com esmalte preto (cerâmica de Mino, Seto). The Metropolitan Museum of Art.

Estúdio de Tingimento Indigo Higeta, Mashiko, Japão

Parte da minha pesquisa de campo de doutorado no Japão, sobre artistas ocidentais que vieram praticar cerâmica no país do sol nascente, foi realizada numa pequena cidade chamada Mashiko, na prefeitura de Tochigi, a uns 150 km a norte de Tokyo. Mashiko ficou conhecida depois que o ceramista Hamada Shoji, membro do movimento mingei, dedicado à valorização e preservação do artesanato folclórico, estabelceu seu estúdio de cerâmica aí nos anos 1920. No entanto, o post de hoje é dedicado não à cerâmica, mas a outra arte feita em Mashiko, mais especificamente no Estúdio Higeta: o tingemento de indigo.

Indigo é um método de tingimento conhecido no Japão como aizomé e famoso pelo seu profundo tom azul . A tintura é, primeiramente, obtido através da extração de um componente que pode ser encontrado em várias espécies de plantas, no caso do Japão, a Persicaria Tintoria, também chamada de Indigo Japonês. Após a secagem das folhas, a planta passa por processo de fermentação que, através da oxidação devido ao contato com o ar, dá origem à famosa tintura azul, com a qual se efetua então o processo de tingimento. Diferentes tons de azul podem ser obtidos dependendo da duração que o tecido, geralmente algodão, é mergulhado na solução de indigo, do número de imersões e do nível de fermentação da planta.

Fotos: Liliana Morais

No período Edo (1603-1868), quando o governo militar encabeçado pelo shogun dominava grande parte do atual território japonês, um rígido sistema de classes foi implementado com o objetivo de manter a ordem social e, como parte disso, leis definindo as vestimentas de cada classe restringiam as opções da população. Proíbidos de vestir seda, luxo limitado aos samurais, peças de algodão tingidas de indigo tornaram-se comuns entre as camadas inferiores. Segundo a JETRO (Organização do Comércio Externo do Japão), cerca de 80% de todas as roupas usadas pelas pessoas comuns eram tingidas com indigo, antes da disseminação de tintas sintéticas e meios industriais de produção.

O Estúdio de Tinturaria Indigo Higeta existe há mais de duzentos anos, hoje na mão da nona geração de artesãos. Localizado no centro da cidade de Mashiko, rodeado por galerias e estúdios de cerâmica, o estúdio funciona numa belíssima construção da era Edo, feita com telhado de colmo, arquitetura típica do interior do Japão, e pode ser visitado de quinta a domingo entre as 8:30 e as 17:30 (sujeito a confirmaçao). Além da venda de produtos, o visitante pode assistir ao processo de tingimento in situ. Além da produção da tintura e da efetuação do tingimento, o estúdio Higeta tambem se dedica ao cultivo do algodão, no fabrico de fios e tecelagem dos tecidos tingidos à mão.

Fotos: Liliana Morais

Acesso:

Higeta Indigo Dyeing Studio
Jonaizaka 1, Mashiko-machi, Haga-gun, Tochigi Prefecture

15 minutos a pé da estação de trem de Mashiko (linha Mooka).

https://goo.gl/maps/dxhVtKsv6CUiPvwk7

Mais informações: https://www.jetro.go.jp/en/eccj/ind_tourism/higeta_aizome_kobo.html

Lançamento do livro “Cerâmica em Cunha: 40 anos de forno noborigama no Brasil”

O livro “Cerâmica em Cunha: 40 anos de forno noborigama no Brasil”, lançado no dia 30 de setembro na nova Casa do Artesão, na cidade de Cunha, interior do estado de São Paulo, já está disponível para venda!

14433006_10209093189439382_2771003596132176547_n

O resultado é fruto de uma colaboração minha com o Instituto Cultural da Cerâmica de Cunha (ICCC) juntamente com Johnny Mazzilli, que fez as fotos, Laurentino Dias, a cargo da diagramação, e Silvana Baierl na produção.

A ideia do projeto surgiu da nova presidência do Instituto Cultural da Cerâmica de Cunha, encabeçado por Marcelo Tokai. O ICCC foi criado em 2009 com o objetivo de promover a atividade cerâmica na cidade e suas atividades incluem o ensino da cerâmica aos alunos da rede pública, além da realização de palestras, oficinas, workshops e o Festival da Cerâmica, que acontece anualmente em outubro.

O projeto inicial era fazer uma edição atualizada da publicação de 2005, lançado em comemoração aos 30 anos de forno noborigama em Cunha pelos ceramistas pioneiros Mieko Ukeseki e Alberto Cidraes, que trouxeram essa técnica do Japão aqui para a cidade em 1975.

Entretanto, após um ano de pesquisa, durante o qual entrevistei mais de 40 ceramistas em atividade na região, acrescentados ao trabalho que em venho desenvolvendo desde 2010 sobre a influência da cerâmica japonesa no Brasil, o que era para ser uma reedição de uma publicação esgotada acabou se tornando em uma nova publicação.

Composto de 150 páginas, com capa em alta gramatura e miolo em papel couche, além de dezenas de fotos inéditas, o livro é constituído por três capítulos principais. O primeiro sobre a história da cerâmica em Cunha, com foco nos 40 anos de forno noborigama na cidade. Um segundo, mais didático, sobre os processos envolvidos na produção de cerâmica em geral e em Cunha em particular, desde a coleta da argila até à descrição dos vários tipos de fornos usados aqui na cidade. E o terceiro capítulo, um catálogo dos ceramistas da cidade.

14484854_10209093194399506_3251467941129177373_n

“Cerâmica em Cunha: 40 anos de forno noborigama no Brasil” é o produto de muito esforço pessoal, com o apoio institucional e edição do ICCC, e não contou com nenhum financiamento de caráter governamental. O valor arrecadado a partir da venda coletiva foi usado para cobrir os custos básicos de produção.

Este é um projeto realizado através dedicação de muitas pessoas, que doaram altruisticamente seu trabalho das mais variadas formas para a sua concretização.

Este slideshow necessita de JavaScript.

 

A primeira tiragem incluiu a impressão de 500 exemplares. O valor arrecadado com a venda será mobilizado para novas tiragens. Agradeço por isso sua colaboração.

O livro está disponível para venda nos seguintes locais:

São Paulo – Arte Brasil
Rua Joel Jorge de Melo, 752
Vila Mariana – São Paulo
04128-081 – SP
Referência: Próximo à estação Santa Cruz.
Paralela com a Domingos de Moraes e transversal com a Luis Góes, sentido Ricardo Jafet.

Cunha – Casa do Artesão
R. José Arantes Filho, 27, Cunha – SP.
Cunha – Ateliê Suenaga & Jardineiro
Rua Doutor Paulo Jarbas da Silva, 150 – Mantiqueira, Cunha – SP, 12530-000
Futuramente, estará também disponível para compra no site da Arte Brasil:
O lançamento incluiu a realização de uma exposição com os artistas presentes no livro, que está aberta à visitação na Casa do Artesão, Cunha, até dia 15 de novembro.

Este slideshow necessita de JavaScript.