Kôgei entre o Japão e o Brasil: A cerâmica de Shoko Suzuki

(Tradução para o português de artigo em inglês publicado na revista Garland. Para citação do artigo, por favor referir-se à versão original: Morais, Liliana. "Kôgei between Japan and Brazil: The ceramics of Shoko Suzuki". Garland Magazine, issue 24,  30 August 2021, available at: https://garlandmag.com/article/kogei-between-japan-and-brazil-the-ceramics-of-shoko-suzuki/)

Kôgei é a palavra japonesa para o inglês craft, que em português pode ser traduzida como artesanato. Comparar a etimologia e significado das três palavras oferece-nos pistas valiosas sobre os modos de olhar, compreender e atribuir valor aos objetos e habilidades incluídas nestas três categorias.

O termo craft apareceu pela primeira vez na língua inglesa há cerca de mil anos e, durante a maior parte de sua história, foi usado como sinônimo de “conhecimento”, “poder” e “habilidade”. A partir do século XIX, seu significado mudou para se referir a uma categoria de coisas (em especial, uma categoria de objetos) ao invés de uma forma de fazer as coisas (seja fazer guerra, tornear um pote ou montar a cavalo), como anteriormente

A palavra japonesa kôgei 工藝, de origem chinesa, foi registada pela primeira vez no século 7 no Livro de Tang da dinastia da China. Entretanto, seu uso generalizado no Japão remonta a 1873, quando apareceu como tradução do inglês craft na Exposição Internacional de Viena. A palavra é composta por dois ideogramas, 工e gei 藝, que contém em si os significados de “habilidade”, “arte” e “técnica”.

Em Arte Modern Japanese Art and the Meiji State: The Politics of Beauty (2011), o historiador de arte japonês Doshin Sato explica que, embora a palavra japonesa gigei 技藝 (“arte técnica”) possa ter sido a mais próxima do significado moderno do inglês craft no Japão pré-moderno, a maioria das profissões artesanais eram designadas pelo ideograma 工 precedido pelo material usado na produção do objeto. Assim, por exemplo, um ceramista seria chamado de tôkô 陶工 (“técnico de cerâmica”) e um trabalhador de laca japonesa shikkô漆工 (“técnico de laca”), indicando assim a centralidade do material para a prática, apreciação e compreensão destas diferentes formas de arte/ habilidades.

Finalmente, a palavra portuguesa artesanato vem do latim ars e, semelhante ao japonês, transmitia os significados de “habilidade”, “técnica” e “talento”. Entretanto, devido à separação eurocêntrica entre arte (ou belas-artes) e artesanato que ocorreu na era moderna (enquanto alguns pesquisadores apontam para o Renascimento, outros localizam esta divisão em meados do século XVIII), a palavra portuguesa artesanato denota frequentemente um tipo de trabalho manual amador, simples, doméstico e pouco especializado, normalmente feito por mulheres ou minorias étnicas como suplemento de renda. Assim, a maioria dos artesãos brasileiros, em especial aqueles com educação de nível superior ou treinamento profissional especializado, evita se autodenominar de artesão ou artesã.

Devido à associação da palavra artesanato com ruralidade, amadorismo e domesticidade, exatamente 60 anos após a chegada dos primeiros imigrantes japoneses no Brasil, um grupo de artistas e artesãos japoneses, a maioria dos chegados no país após a Segunda Guerra Mundial, escolheu a palavra japonesa kôgei em vez do português artesanato para nomear sua associação e exposição anual destinada a promover o artesanato japonês (kôgei)[1] em seu novo país de residência.

A Associação de Arte Kôgei foi criada em 1968 para educar o público brasileiro sobre o “autêntico” artesanato tradicional japonês. Entretanto, quando os monarcas japoneses visitaram o Brasil em 1997, alguns membros da associação pensaram que seria melhor mudar o nome de forma a destacar a assimilação, adaptação e influência dos imigrantes japoneses na sociedade brasileira. De fato, foi a mestre ceramista Shoko Suzuki quem sugeriu que o uso da palavra inglesa craft:

Eu lembrei daquela palavra de William Morris[2]. Ele estava preocupando com alto nível de trabalho de mão. Craft é assim […]. Craft para mim parece muito internacional, mais do que kōgei, kōgei é japonês. […] Nós viemos aqui, não é para ser, divulgar, japoneses. Precisamos entrar nessa cultura brasileira […]. Tem que ser internacional, universal.

Entrevista com Shoko Suzuki em 2012
Novo Mundo de Shoko Suzuki. Foto de Felipe Costa.

Shoko Suzuki (Tóquio, 1929-) havia imigrado para o Brasil em 1962, depois de assistir a um programa de televisão da emissora nacional japonesa NHK sobre o Brasil. O programa exibia imagens das (cada vez mais escassas) áreas virgens da Floresta Amazônica e da capital Brasília, construídas em uma região deserta em um ambicioso projeto de design do arquiteto modernista Oscar Niemeyer (1907-2012). Estas imagens alimentaram o desejo da ceramista de deixar o Japão, após ter vivenciado os horrores da Segunda Guerra Mundial e experienciado discriminação de gênero. Ela ansiava por começar do zero em um lugar onde uma tradição rígida e estritas normas sociais não restringiriam sua liberdade e criatividade. Como mulher no Japão pós-Ocupação, ela teve que superar invisíveis barreiras de gênero na sua busca por um mestre ceramista que a aceitasse como aprendiz. Em exposições de renome como a Tôtôkai, realizada pela associação do mesmo nome fundada pelo renomado ceramista Hazan Itaya (1872-1963), ela foi, por vezes, a única mulher entre um grupo de quarenta ceramistas do sexo masculino.

Shoko Suzuki trabalhando em um torno manual no Japão, cerca de 1960.
Arquivo pessoal da artista.

Depois de assistir ao mencionado programa da NHK no final de 1961, Suzuki rapidamente colocou sua casa à venda e reuniu a documentação necessária para iniciar o processo oficial de emigração. Ela chegou ao porto de Santos, no Estado de São Paulo, a bordo do navio Argentina-Maru, em maio de 1962, após uma viagem de dois meses. Logo alugou uma casa de pau-a-pique em Mauá, no interior de São Paulo, onde começou a coletar argilas e feldspatos locais e a fazer experimentos de esmaltes de cinzas naturais com plantas e vegetais da região. Em 1964, ela e o marido, o pintor Yukio Suzuki, compraram uma casa na vizinha região de Cotia, onde Shoko Suzuki deu início à construção de um forno tradicional japonês alimentado a lenha chamado noborigama (literalmente “forno que sobe”, o noborigama foi introduzido no Japão por artesãos coreanos no século 16 durante chamadas “guerras de cerâmica” decorrente da invasão japonesa da península). Para a construção do forno, Suzuki usou um projeto que havia recebido como presente de despedida do Japão de um amigo ceramista que havia estudado com o Tesouro Nacional Vivo Yuzo Kondo. Como material, ela usou tijolos reciclados da vizinha fábrica de porcelana Mizuno, estabelecida por imigrantes japoneses quatro anos antes. Embora a construção de um forno noborigama no Brasil não fizesse parte de seu plano inicial, a inclinação íngreme do terreno acabou sendo perfeita para o projeto que havia recebido. Nas palavras da ceramista:

Eu não ia fazer forno noborigama no Brasil. Mas o meu amigo deu-me o projeto dele. No Japão, era uma tradição muito rigorosa. Ele era aluno de uma pessoa muito importante no Japão. […]. Geralmente isso [plano arquitetónico de forno] era muito segredo. Naquela época, ceramistas com pouco nome conservavam segredo, mas ele disse: “esse forno eu vou dar, porque você vai para o fim do mundo, esse é só para você!”. Então eu lembrei e pensei: vou usar esse aqui. O tamanho do forno é pequenino e a inclinação [do terreno] é exatamente para esse forno.

Entrevista com Shoko Suzuki em 2012.
Shoko Suzuki com o marido Yukio Suzuki na frente de seu forno noborigama chamado Saigama 彩窯, que significa “forno de cor”, em Cotia em 1965. Arquivo pessoal da Artista.
Shoko Suzuki em seu ateliê em Cotia em 2012. Foto de Felipe Costa.

No Brasil, os povos indígenas têm queimado argila para produzir uma variedade de objetos desde há pelos menos 2000 anos atrás. Tipicamente feita por mulheres em ambiente doméstico, a cerâmica indígena era formada à mão, pintada com uma mistura de pigmentos naturais e queimada a baixas temperaturas de cerca de 700°C em simples fornos de chão. A partir do século 16, com a colonização portuguesa, ceramistas especializados aglomeraram-se no litoral e a argila foi usada tanto para trabalhos de construção (como telhas e tijolos) quanto para louça de mesa, formada na roda do oleiro e queimada em fornos de corrente vertical (updraft) que atingiam cerca de 1000°C. Nesta época, a faiança foi trazida de Portugal e, após a descoberta do caulim na Saxônia em 1750, a porcelana de alta qualidade também foi importada para o uso de poucos. A partir de meados do século XIX, com movimentos em massa vindos da Europa, a produção de cerâmica industrial expandiu-se liderada por imigrantes portugueses e italianos e impulsionada por novas tecnologias. Em 1928, a fábrica de porcelana S. Toyoda e Companhia Limitada foi fundada em São Caetano do Sul pela primeira família de imigrantes japoneses na cidade e permaneceu em funcionamento até 1981.

Na primeira metade do século XX, a cerâmica decorativa de Theodoro Braga (1872-1953) e as esculturas de barro de Vitor Brecheret (1894-1955) contribuíram para esmaecer as fronteiras entre belas-artes e artesanato transplantados para o Brasil com a colonização europeia. A cerâmica popular, com forte ligação à tradição indígena, exemplificada pelo trabalho do Mestre Vitalino (1909-1963) e dos artesãos do Vale de Jequitinhonha, em Minas Gerais, também foi reavaliada em suas qualidades artísticas e estéticas. Mais recentemente, mulheres como Lygia Reinach (1933-), Ofra Grinfeder (1945-) e Norma Grinberg (1951-) aliaram cerâmica e arte conceitual, e Kimi Niii (1947-), cerâmica e design.

Artesãos e artistas imigrantes do Japão, como Shoko Suzuki, Akinori Nakatani (1943-), Mieko Ukeseki (1946-), Shugo Izumi (1949-), Kenjiro Ikoma (1948-) e outros, tiveram um papel essencial na expansão de objetos funcionais, decorativos e escultóricos feitos em cerâmica para além do território convencional do artesanato. Eles foram responsáveis pela disseminação de técnicas japonesas, como a queima a lenha em alta temperatura em fornos anagama e noborigama e a queima de cinzas com vegetais naturais, entre praticantes e o público em geral. O atual boom de cerâmica feita à mão, visível especialmente nas áreas urbanas ao redor do Brasil, deve certamente às raízes que eles, e aqueles que os precederam, laboriosamente plantaram.

Em 2006, a aprendiz de Shoko Suzuki, Ivone Shirahata, construiu um forno noborigama seguindo o mesmo projeto que Suzuki recebeu antes de deixar o Japão, em seu ateliê Terra Bela. Nomeado de Akebonogama (do japonês “amanhecer”), é o terceiro do seu tipo, depois do original construído pelo ceramista Yoshikazu Shinoda em Nagano, chamado Metobagama, e o Saigama de Suzuki.  

Eu fiquei tão feliz! Eu queria ficar no meio. Eu queria aprender pisando no chão, sozinha, absorvendo.

Shoko Suzuki
Torno manual estilo japonês de Shoko Suzuki. Foto de Felipe Costa, 2012.
Esmaltes de cinzas naturais em processo de preparação no ateliê de Shoko Suzuki. Foto de Felipe Costa, 2012.

Shoko Suzuki passou dois anos testando a argila e os esmaltes feitos de matérias-primas locais em seu novo forno antes de mostrar o seu trabalho oficialmente ao público brasileiro. Em 1967, ela chamou finalmente membros da comunidade japonesa e brasileira para a abertura formal do forno em seu ateliê, um evento que reuniu um total de 800 pessoas. Em 1975, Suzuki expôs sua cerâmica em uma exposição individual no Museu de Arte de São Paulo (MASP), um dos mais renomados museus de arte do Brasil e a primeira artista plástica nascida no Japão a fazê-lo. Em 1984, ela finalmente teve a oportunidade de admirar em primeira mão as construções modernistas de Niemeyer quando viajou a Brasília para uma exposição na Fundação Cultural do Distrito Federal. E em 1995, ela retornou ao Japão pela segunda vez após imigrar para o Brasil, para uma exposição intitulada “Mostra Itinerante Nipo-Brasileiros Contemporâneos”, realizada em comemoração ao Centenário do Tratado de Amizade Brasil-Japão no Museu de Arte da Província de Niigata e outras instituições ao redor do Japão, sendo a única ceramista de um grupo de 37 artistas nipo-brasileiros. Em 2017, Shoko Suzuki recebeu uma Ordem de Mérito do governo japonês por suas notáveis contribuições à cultura japonesa.

Durante uma de suas visitas ao Japão, uma velha amiga ceramista, olhando as obras de Suzuki em uma exposição, disse-lhe “você não é mais japonesa”. Suzuki riu ao me contar a história em seu ateliê: Eu fiquei tão feliz! Eu queria ficar no meio. Eu queria aprender pisando no chão, sozinha, absorvendo.

Detalhe da obra da série Campo de Shoko Suzuki. Foto de Felipe Costa, 2012.
Obras de Shoko Suzuki, série Cosmos. Foto de Felipe Costa, 2012.

Observações:

  • Este artigo é baseado na minha tese de mestrado intitulada “Duas Mulheres Ceramistas entre o Japão e o Brasil: Identidade, Cultura e Representação”, Universidade de São Paulo, 2014.
  • Todos os nomes japoneses estão na ordem ou Nome-Sobrenome.

[1] A palavra japonesa kôgei é usada para denominar obras geralmente, mas não necessariamente, de caráter funcional e/ou decorativo, feitas em materiais como cerâmica, vidro, metal ou madeira, entre outros.

[2] William Morris é considerado um dos principais fundadores do movimento das Artes e Ofício (Arts and Crafts Movement em inglês) na Inglaterra no final do século XIX e principal responsável pelo rebranding da palavra craft.