Ceramistas e suas ferramentas

Embora objetos inanimados, as ferramentas utilizadas pelos artesãos, ou outros especialistas, funcionam como uma extensão de seus dedos, mãos e corpo.


“Onde a tecnologia é simples, a ferramenta é uma extensão do corpo; a lançadeira* alonga e refina o dedo, o martelo é um punho mais duro e mais poderoso. A ferramenta segue o ritmo do corpo; ela aumenta e intensifica, mas não substitui e não introduz nada basicamente diferente (Margaret Mead, antropóloga, em Cultural Patterns and Technical Change, Paris: Unesco, 1953, tradução minha).

*lançadeira: utensílio usado na tecelagem manual no tear.


Por causa disso, não é raro ceramistas no Japão fazeerem suas próprias ferramentas ou adaptarem ferramentas pré-existentes à forma e funcionamento de suas mãos e de seu corpo. Além das sugestões visuais, as ferramentas também são uma forma importante de o artesão obter informações sobre o progresso de seu trabalho e as condições dos materiais durante o processo de fabricação, usando os sentidos da audição e do tato.

Embaixo podem ver algumas ferramentas usadas pelos ceramistas no Japão, fotografadas no Museu de Cerâmica Setoguro, na prefeitura de Aichi, e sua descrição.

Na figura 1, da esquerda para a direira: couro curtido (nameshigawa), espátula (hera) e talochas (kote). Na figura 2: shippiki. Na figura 3: balde para aquecer as mãos (kanburo).

Talochas (kote)

Ferramenta, geralmente feita de cipestre japonês, usada para dar forma à argila ao pressioná-la contra a superfície interna da peça no trabalho no torno. Existe em vários formatos dependendo do objecto a ser produzido. A posição do corte na parte superior serve de guia de profundidade. Para um recipiente com uma boca estreita e longa, usa-se uma talocha com cabo longo (egote), que tem uma constrição na ponta para que possa ser facilmente colocada e removida através da abertura.

Espátula (hera)

Ferramenta usada para alisar a peça após a modelagem no torno com a talocha, agindo também como uma régua para a superfície curvada no interior do vaso. A espátula tem um acabamento com um único gume e pode ser afiada após desgaste com uso. Feita de madeira dura de grão fino, como jujuba ou buxo, não amolece mesmo depois de estar todo o dia mergulhada em água. Segundo alguns ceramistas, quando a forma da peça atinge o nível de perfeição, a sensação é de como se a espátula estivesse sendo absorvida pela argila.

Couro curtido (nameshigawa)

Ferramenta usada para dar os toques finais na boca da peça, suavisando-a para evitar que ela rache ou deforme quando fôr queimada devido às partículas irregulares da argila. Em termos de materials, couro de veado é preferido por ser mais próximo à pele humana. Couro mais grosso é usado para peças maiores e couro mais fino para peças menores.

Shippiki

Ferramenta usada para separar a peça do torno. Com o torno girando, o shippiki é enrolado ao redor da peça e puxado. Enquanto qualquer material resistente à água pode ser usado, como algodão, cânhamo, ou arame, em Seto era comum usar cordas de palha amarradas. Visto o padrão ser diferente dependendo de quem fazia e usava a ferramenta, o ceramista podia ser identificado ao olhar para o fundo da peça (itosoko).

Balde para aquecer as mãos (kanburo)

Balde com água usada na roda do oleiro. No inverno, o carvão vegetal é colocado no cilindro de cobre para aquecer a água.

Referência: Catálogo de Exposição, Seto: Museu Setogura, 2007.

Museu de Cerâmica de Seto

O polo de cerâmica de Seto, localizado a cerca de 30 minutos de trem da cidade de Nagoya na prefeitura de Aichi, é considerado um dos “seis antigos fornos do Japão” (六古窯 rokkoyo, em japonês), nomenclatura criada pelo ceramista e pesquisador Fujio Koyama em 1948 para denominar as principais regiões do Japão que se dedicaram à produção de cerâmica de forma especializada desde o período Kamakura (1192-1333):  Echizen, Seto, Tokoname, Shigaraki, Tamba e Bizen. Designados como Patrimônio do Japão pela Agência de Assuntos Culturais, um braço do Ministério da Educação, Cultura, Esportes, Ciência e Tecnologia do Japão (MEXT) em 2017, hoje sabe-se que haviam mais do que seis polos especializados da produção de cerâmica em altas quantidades dadatos da mesma época.

Em japonês, uma das palavras para cerâmica é setomono, exemplificando a popularidade da região. Segunda a lenda, a fundação do polo de cerâmica de Seto é atribuída a Kato Shirozaemon Kagemasa, que teria acompanhado o famoso monge zen Dogen ao sul da China e aprendido a arte da cerâmica, trazendo-a de volta para o Japão. A partir de 1300, ceramistas de Seto produziriam imitações de famosos esmaltes chineses e coreanos, como o celadon e o tenmoku e, no século 15, os primeiros chaire (pote para o chá forte) foram produzidos em Seto como substitutos para luxuosos utensílios chineses.

Jarro (tsubo) com crisântemos estampados e esmaltes de cinzas naturais, estilo Ko-Seto, final do século 13 e início do século 14, Metropolitan Museum of Art 
https://www.metmuseum.org/art/collection/search/53203

Especializando-se em uma variedade de estilos, a região de Seto é conhecida pela produção de cerâmicas com esmaltes de cinzas naturais chamada yakishime, associadas à estética simples rústica do wabi-sabi promovida pelo mestre de chá Sen-no-Rikyû (1522-1591). A partir do período Meiji (1868-1912), com a popularização da arte japonesa no Ocidente (Japonismo), as fábricas de Seto especializaram-se na produção de cerâmicas para exportação, procurando novas abordagens em termos de design e decoração.

Eu visitei a cidade de Seto, incluindo do Museu Setogura do qual vos tragos as fotos em baixo, em fevereiro para a minha pesquisa de doutorado sobre ceramistas ocidentais no Japão (infelizmente, não consegui encontrar nenhum em atividade na região). Como outras regiões de produção artesanal e industrial do Japão, a cidade tem passado por dificuldades nas últimas décadas, após o desacelaração do boom de turismo doméstico rural e interesse pela produção artesanal tradicional dos anos 1980 durante a chamada bolha econômica especulativa. Desde os anos 1990, a região tem então se deparado com uma baixa demanda e consequente drástica redução de preços, em parte devido à fácil acessibilidade e baixos custo de produtos importados, mas também devido à mudança dos gostos e estilo de vida dos consumidores. Isto tem levado à dificuldade dos artesãos em encontrar sucessores para dar continuidade à suas técnicas.

“Na era Meiji (1868-1912), as lojas vendendo cerâmicas de Seto começaram a se alinhar na entrada dos distritos onde os ateliês e fornos estavam localizados. Na década de 1880, com a melhoria dos acessos rodoviários, lojas também abriram ao longo do rio Seto. Estas vendiam todos os tipos de cerâmicas e as louça eram amarradas com cordas e empilhadas, como mostra a foto”. (Tradução do japonês da etiqueta de descrição da primeira imagem exibida no Museu Setogura, na cidade de Seto, prefeitura de Aichi).

Mais informações:

Museu Seto-Gura: https://www.aichi-now.jp/en/spots/detail/19/

Website dos Seis antigos fornos do Japão: https://en.sixancientkilns.jp/