(Tradução para o português do artigo em inglês publicado na revista Garland. Para citação do artigo, por favor referir-se à versão original: Morais, Liliana. "Let’s go back to the campfire: The lesson of mingei". Garland Magazine, issue 25,  1 December 2021, disponível em: https://garlandmag.com/article/what-the-japanese-folk-crafts-movement-can-tell-us-about-the-gap-between-rich-and-poor/)

A palavra japonesa 民藝 mingei é uma abreviatura da expressão 民衆的工芸 minshûteki kogei, que pode ser traduzida para português como “arte popular” ou “artesanato do povo”. A expressão foi criada pelo filósofo japonês Yanagi Soetsu na era Taisho (1912-1926), um período marcado por intensa urbanização, industrialização, e a expansão de uma sociedade de consumo em massa no país. As mudanças bruscas no estilo de vida da população, somadas à ascensão do nacionalismo, foram catalisadores de um renovado interesse nas tradições japonesas após décadas de políticas verticais do governo que tinham como objectivo “civilizar e iluminar” (文明開化 bunmei kaika) o Japão seguindo os moldes ocidentais.

O interesse de Yanagi Soetsu por objectos de uso cotidiano produzidos à mão por pessoas comuns aprofundou-se durante sua visita à Coreia pouco depois da sua anexação ao império japonês em 1910. Juntamente com vários artistas-artesãos (na sua maioria homens) de classe média-alta e formação universitária, Yanagi iniciou um movimento para a apreciação, proteção e apoio de uma produção artesanal com associações a um passado autêntico, anterior à industrialização e ocidentalização do país. Yanagi advogou para que artesãos continuassem a produzir de acordo com modelos históricos, estilos simples e técnicas herdadas ao longo de gerações, e que evitassem inovações tecnológicos como substituto do trabalho manual. O filósofo inspirou-se nas preferências estéticas dos mestres de chá das elites japonesas do século XVI, como Sen-no-Rikyu, que elogiaram a beleza imperfeita e rústica (わび・さび wabi-sabi) das habitações rurais de pau-a-pique com telhados de palha (茅葺 kayabuki), dos potes de cerâmica para armazenamento de água na roça, e de outros utensílios comuns feitos pelas classes camponesas (農 nô) para a seu uso próprio na vida no campo. Quatrocentos anos antes de Yanagi, Rikyu já tinha proposto uma estética modesta e humilde, algo radicalmente diferente da então moda por luxuosos e sofisticados utensílios importados da China, num processo que escolho denominar coml “esteticização da pobreza”.

Casa de chá Ihoan, Templo Kodaiji, Quioto. Foto da autora.

Pensa-se que está cabana de chá, inspirada nas habitações tradicionais dos camponeses, tenha sido encomendada por Haiya Shoeki, um comerciante afluente, praticante de chá e escritor, no século XVII.

Yanagi também foi influenciado pelas ideias propagadas pelo crítico de arte John Ruskin e pelo designer socialista William Morris, associados ao movimento de Artes e Ofícios que, nos finais do século XIX, se alastrou pela Grã-Bretanha e, posteriormente, pelo resto da Europa e pelos Estados Unidos. Confrontados com uma sociedade mudando rapida e radicalmente, mudanças essas trazidas, em parte, pela Revolução Industrial e a consequente transformação de artesãos rurais em trabalhadores de fábricas urbanas, o movimento de Artes e Ofícios juntou designers com formação universitária, artistas e artesãos na produção de objetos utilitários de alto nível. O objectivo era desafiar a então dominante separação entre belas artes (fine arts) e artes decorativas (decorative arts, minor arts ou industrial arts, entre outras nomenclaturas), separação esta que excluía as últimas das renomadas academias de arte, relegando os seus produtores a uma hierarquia inferior à do génio, talentoso e inspirado artista. Influenciado pelas simpatias socialistas de Morris, o movimento das Artes e Ofícios foi impulsionado por um desejo de mudar a vida das pessoas comuns. Ao defender o trabalho artesanal como fonte de prazer e dignidade e advogar que objectos de alta qualidade feitos à mão fossem acessíveis a todas as classes, o movimento Artes e Ofícios apelou para uma reintegração entre vida, beleza, trabalho e sociedade. Infelizmente, os objectos artesanais feitos por seus membros (fabricados em pequenas quantidades com materiais de alta qualidade e envolvendo trabalho manual intenso e especializado), acabaram estando acessíveis apenas para o consumo de um grupo seleto, geralmente os industrialistas e capitalistas que lucravam com os produtos feitos na fábrica através de mão-de-obra barata, através de tarefas tediosas e repetitivas (a cena de Tempos Modernos de Charles Chaplin ilustra bem esse cenário). Ironicamente, os próprios designs de William Morris, originalmente talhados em blocos de madeira e impressos à mão, são hoje facilmente reproduzíveis com dispositivos mecânicos e digitais, imprimidos em tecido poliéster de baixa qualidade e vendidos a baixo custo em vários museus de artes decorativas ao redor do mundo.

Do mesmo modo, Yanagi e os outros membros do movimento mingei estimularam um novo enfoque em objectos de arte popular (mingei), agora vistos não apenas como objetos de interesse etnográfico mas também como objetos de apreciação estética (a partir de 1868, o Japão importou noções ocidentais de arte que excluíam o artesanato do mundo das belas artes). Isto permitiu que artesãos, até então anónimos, exibissem e vendessem suas obras pela primeira vez fora do perímetro das suas regiões, através do apoio e redes criadas pelos líderes mingei. Isto atraiu o interesse de uma classe média-alta japonesa, educada e urbana, que passou a consumir estes produtos como símbolo de uma tradição japonesa ameaçada pelo avanço de estilos de vida ocidentais. No entanto, isto levou ao aumento de preços e à remoção destes objetos da vida quotidiana de suas comunidades.

Casa-museu de Yanagi Soetsu, Museu de Artesanato Folclórico do Japão (Mingeikan), Tóquio. Foto da autora.

O antropólogo Brian Moeran investigou a fundo este complexo paradoxo na sua monografia Folk Art Potters of Japan: Beyond an Anthropology of Aesthetics (1997) – “Ceramistas de Arte Popular do Japão: Para além de uma Antropologia da Estética”. Nela, o autor explora como a reavaliação das tradições artesanais locais pelos líderes mingei alterou a vida comunitária, dinâmicas sociais e processo de produção na pequena aldeia cerâmica de Sarayama, prefeitura de Oita, na ilha de Kyushu, sul do Japão.

Com base no trabalho de Moeran e outros, gostaria de resumir alguns dos desenvolvimentos que surgiram do encontro entre ricos e pobres, centro e periferia, norte e sul, ocidente e oriente, nos últimos séculos:

  1. Um objecto artesanal é feito numa comunidade, utilizando materiais locais e técnicas herdadas, para uso quotidiano dos seus produtores ou como objecto de troca. Os objectos estão fortemente derivam das necessidades das pessoas, seu estilo de vida, preferências e visão do mundo.
  2. Intelectuais, críticos ou colecionadores descobrem a comunidade, chamando a atenção para os objectos aí produzidos através de publicações, exposições, e assim por diante.
  3. À medida que pessoas de fora da comunidade compram o objecto sem conhecimento direto dos seus produtores ou condições de produção, o objecto entra no mercado, tornando-se assim uma mercadoria no sentido marxista do termo.
  4. Os produtores locais necessitam produzir mais como resposta ao aumento da demanda. Para isso, podem introduzir tecnologia avançada para produzir de forma mais barata e eficiente. Uma maior produção significa que mais quantidades de matéria-prima são usadas, o que pode levar ao esgotamento dos recursos naturais locais. Quando isso acontece, materiais vindos de outros locais são utilizados ou alternativas artificiais são introduzidas.
  5. A promoção do objecto fora da região pode levar à popularização da comunidade que o produz, atraindo turistas. Isto pode gerar impactos ambientais e sociais, se em massa e desregulamentado.
  6. À medida que o dinheiro entra na comunidade em quantidades sem precedentes, os estilos de vida dos residentes são permanentemente alterados. No que anteriormente produziam uma variedade de objectos como complemento a outras actividades, os habitantes começam agora a dedicar-se apenas a um tipo de produção artesanal a tempo inteiro. Como alguns produtores recebem mais atenção e a vendem mais do que outros, as desigualdades dentro da comunidade vão se alargando.
  7. A mudança dos estilos de vida e o desenvolvimento de uma economia monetária levam a que os membros da comunidade se tornem eles mesmos consumidores. Eles podem agora comprar produtos industriais baratos enquanto fabricam objectos artesanais para vender para turistas e colecionadores, que estão dispostos a pagar preços mais elevados. Os objectos já não preenchem uma função na comunidade que os produz. Separados do seu contexto e significado originais, os objectos podem perder a sua aura de autenticidade, tornando-se assim “arte turística” (ver Clifford, 1998).
  8. Cópias baratas dos objetos são produzidas, atraindo consumidores leigos. Os materiais, processos e mão-de-obra envolvidos na produção tornam-se irrelevantes, levando ao que Marx chamou de “fetichismo de mercadoria” (os consumidores não sabem quem, onde e como o objecto é produzido, mas fetichizam o produto final).
  9. Com a rápida mudança das tendências do mercado e recessões económicas, a procura do objecto diminui.
  10. Alguns coleccionadores podem ainda comprar o objecto visto como “autêntico” para vender às classes mais altas (geralmente no exterior) ou expor em galerias e museus como insígnia de um cenário nostálgico, uma cultura exótica, ou de um passado romantizado. O governo local põe em prática políticas culturais para garantir que as técnicas e abilidades utilizadas na confecção do objecto sejam transmitidas às gerações futuras, levando a que, por vezes, estas se tornem a performativas. O resultado é, muitas vezes, a produção de um simulacro de um objecto percebido como autêntico. O processo de produção e a aparência do objecto podem ficar anacrónica e artificialmente parados no passado de modo a manter sua aura de autenticidade, ao invés de evoluir organicamente com a vida das pessoas.

Haverá uma solução para este paradoxo? Acredito que uma conversa sobre o lugar do artesanato nesta dicotomia entre ricos e pobres não pode acontecer sem questionar o nosso actual sistema económico global, que depende da exploração ambiental, expropriação de terras, acesso desigual a recursos, e desigualdade entre norte e sul, este e oeste, centro e periferia para a sua manutenção.

Ferramentas de pesca usados pela etnia Ainu, Museu Folclórico Ainu Kussharo Kotan. Foto da autora.

Em 2019, os Ainu de Hokkaido foram oficialmente reconhecidos como povos indígenas do Japão, 120 anos após políticas de assimilação do governo terem levado a sua cultura à quase extinção. Expropriados de suas terras e obrigados a se tornarem agricultores em outros locais, os objetos utilizados no seu dia-a-dia de de caçadores-recolectores e nos rituais associados a esse estilo de vida agora só podem ser vistos em museus e galerias ao redor do Japão. Em 2009, com o objetivo de recuperar as abilidades, conhecimentos e significações associados aos objectos que em tempos fizeram parte do quotidiano de seus antepassados, o Museu Universitário de Hokkaido implementou um projecto destinado a explorar a relação entre artistas contemporâneos de herança Ainu e os materiais e objectos feitos pelos seus ancestrais (ver Yamasaki & Miller, 2018).

Um artesanato popular para o futuro

No período do pós-guerra, a palavra mingei tornou-se sinónimo de produtos antiquados, baratos e feitos à mão, comprados por residentes urbanos, afluentes e de meia-idade e como lembranças de áreas rurais cada vez mais exploradas e despovoadas, dependendo do turismo para a sobrevivência económica.

Entretanto, nos últimos anos, interesse por mingei reapareceu entre uma classe média urbana jovem e ambientalmente consciente, que começou a ver o artesanato como um modo de produção e consumo éticos e personalizados. O aumento da “consciência do estilo de vida” 生活意識 seikatsu ishiki), ou seja, a consciência de que os objetos comuns que nos rodeiam no dia-a-dia desempenham um papel importante no nosso bem-estar, também contribuiu para esta tendência (Kurata, 2015). Infelizmente, na maioria das vezes, estes desenvolvimentos tendem a ser canibalizados pelo próprio capitalismo.

No entanto, saber quem faz o quê e como é primeiro passo na aniquilação do fetichismo da mercadoria que leva à exploração laboral e ambiental. Dada a oportunidade (isto é, um emprego estável, salário digno e suficiente rendimento disponível), a maioria das pessoas opta por investir em bens mais caros mas de alta qualidade e longa durabilidade, investindo em seu cuidado e reparação, diminuindo, deste modo, o consumo, desperdício, e impacto ambiental. A ligação directa entre produtores e consumidores, através de estúdios abertos, festivais, e outras iniciativas centradas no fabricante, processo e material, parece ser crucial para que isto aconteça. Precisamos de criar mais oportunidades para trazer objectos de valor histórico, estético e artístico para fora do espaço intocável do museu e para dentro da vida das pessoas comuns, de modo a reforçar a fortalecer a interrelação entre pessoas e objetos artesanais.

Mas artesanato não é apenas acerca de objectos. Artesanato é sobre conexões humanas, um elemento essencial para uma vida longa e saudável de acordo com pesquisas recentes. Artesanato também são o conhecimento, tempo e dedicação investidos em fazer algo que irá acrescentar positivamente à vida tanto dos produtores como dos utilizadores. É sobre troca, cuidado pelos outros, respeito dos outros, e orgulho pelo resultado das nossas agilidades e esforços. É sobre uma ligação com os materiais e, por extensão, com o ambiente em que esses materiais habitam. É sobre a experiência estética alcançada não apenas através da contemplação desinteressada em lugares de culto como são a maioria dos museus, mas através de todos os sentidos (tato, audição, visão, olfato e paladar).

Saber como as coisas são feitas e conhecer as pessoas que as fazem é compreender o tempo e o cuidado investidos na aquisição de uma abilidade que permite a transformação aparentemente mágica de matérias-primas em objectos quotidianos que trazem significado e prazer à nossa vida quotidiana. Como cultura, precisamos urgentemente de reavaliar a nossa preferência pelas chamadas aptidões “intelectuais” sobre capacidades tácitas e providenciar a devida dignidade e respeito àqueles que fazem coisas essenciais para a nossa vida, a começar pelos alimentos.

Comida parece ser uma peça crucial para repensar a forma como nos relacionamos com o artesanato e como o artesanato se relaciona com a vida. O movimento slow food (literalmente “comida lenta”) tem sido acompanhado por um ressurgimento de interesse pelo artesanato. Isto não é uma coincidência. Muito do artesanato está ligado à sociabilidade e aos seus rituais, como aqueles envolvidos no processo de comer e beber, especialmente com os outros. Para que o artesanato floresça e permaneça relevante na vida daqueles que o produzem, temos despriorizar o crescimento económico e privilegiar a felicidade, o bem-estar e oportunidades regulares de desfrutar a “vida boa”, um conceito já enfatizado pelo filósofo grego Aristóteles. Para isso, precisamos recuperar aquilo que nos torna humanos: a vontade de nos reunirmos à volta de uma fogueira com um copo da nossa bebida preferida e contar histórias sobre o passado, ao mesmo tempo que imaginamos um futuro melhor.

Reunidos em torno de uma fogueira em Cunha, no interior de São Paulo (Brasil) onde o artesanato é parte integrante da vida quotidiana das pessoas que o produzem. Foto da autora.

Referências

Brandt, Kim. 2007. Kingdom of Beauty: Mingei and the Politics of Folk Art in Imperial Japan. Durham and London: Duke University Press.

Clifford, James. 1988. “On Collecting Art and Culture”. In The Predicament of Culture. Harvard University Press, pp.215-229.

Clammer, John. 2015. Art, Culture and International Development: Humanizing Social Transformation. London and New York: Routledge.

Fischer, Edward F. 2014. The Good Life: Aspiration, Dignity, and the Anthropology of Well-Being. Sandford University Press.

Kurata, Takashi. 2015. Mingei to intimacy (itoshisa) wo design suru. Tokyo: Meiji Daigaku Shuppankai.

Kikuchi, Yuko. 2004. Japanese Modernization and Mingei Theory: Cultural Nationalism and Oriental Orientalism. London/ New York: Routledge Curzon.

Moeran, Brian. 1997. Folk Art Potters of Japan: Beyond and Anthropology of Aesthetics. Surrey: Curzon Press.

Morais, Liliana Granja Pereira de. 2016. Cerâmica em Cunha: 40 anos de forno noborigama no Brasil. Instituto Cultural da Cerâmica de Cunha.

Rennstam, Jens. 2021. Craft and degrowth – An exploration of craft-orientation as a mode of organizing production and consumption for addressing climate change. Paper presented at the EGOS colloquium, Amsterdam.

Sennett, Richard. 2008. The Craftsman. New Haven & London: Yale University Press.

Yamasaki, Koji & Miller, Mara. 2018. “Ainu Aesthetics and the Philosophy of Art: Replication, Remembering, and Recovery”. In New Essays in Japanese Aesthetics, edited by Nguyen Minh. Lexington Books, pp. 139-152.

Yanagi, Soetsu. 1972. The Unknown Craftsman: a Japanese Insight into Beauty. Kodasha International.

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